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CAMPOS DA MORTE – Em Um Belo Domingo, Jorge Semprun revisita campo de concentração nazista e mira gulag soviético. julho 17, 2015

Posted by eliesercesar in Resenhas.
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Livro

Numa célebre metáfora, o filósofo (pré-socrático) grego Heráclito, cognominado  “O obscuro” –  embora fosse claro como a superfície das águas sob a luz do sol – disse que jamais entramos num mesmo rio. De fato, como num rio de águas impetuosas, a correnteza da vida nunca é a mesma, impele, inexoravelmente, os fatos para trás e impulsiona as pessoas para a frente na obrigação de  continuar vivendo, bem ou mal. O escritor espanhol Jorge Semprun, ex-militante do Partido Comunista Espanhol, ex-stalinista e autor de uma das mais devastadoras autocríticas feitas por um comunista, Autobiografia de Federico Sanchez, parece ter se recusado a banhar-se nesse rio que jamais será o mesmo, optando pelas águas que sempre voltavam a um mesmo leito, o rio da memória.

“Pois minha vida não é como um rio, sobretudo não como um rio a cada dia diferente, jamais o mesmo, em cujas águas não podemos nos banhar duas vezes: minha vida é o tempo do que foi visto, do que foi vivido, da repetição do mesmo, quase até à saciedade até tornar-se diferente, estranha, á força e ser idêntica”, diz Semprun, num trecho do romance Um Belo Domingo (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Tradução de Aulyde Soares Rodrigues). Daí, Semprun ser, acima de tudo, um memorialista e seus romances resultarem da experiência pessoal.

Um Belo Domingo não foge a fórmula. A pretexto de relatar seu confinamento no campo de concentração de Buchenwald, entre 1943 e a libertação dos prisoneiros às vésperas do final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, Semprun faz novamente um acerto de contas, menos demolidor do que Federico Sanchez,  com o seu passado de stalinista convicto. O relato de sua passagem pelo inferno de Buchenwald já havia sido feito em A longa viagem, mas depois de ler Um dia na vida de Ivan Denissovitch, de Alexander Soljenitzyn (sobre um prisioneiro de um gulag soviético), o romancista espanhol sentiu necessidade de reescrever sua experiência no campo de concentração nazista.

Por quê? Porque, na época em que escreveu  o primeiro livro, ainda acreditava, ingenuamente,  que era possível corrigir os desvios do socialismo pelo centralismo burocrático do stalinismo;  que os campos de prisoneiros soviéticos (o gulag, sigla em russo para Administração  Geral dos Campos) serviam para reeducação dos cidadãos desviados pela propaganda burguesa e antirrevolucionária e não para o que efetivamente fora feito: livrar o Estado de pessoas indesejáveis,  tenha nome de gulag ou campo de concentração, diferença semântica para métodos semelhantes de confinamento, brutalidade, tortura e morte.

Na época de A grande viagem, Jorge Semprun ainda também não havia lido Arquipélago Gulag, livro do próprio Soljenitzyn que escancara a existência dos campos de prisioneiros soviéticos e os motivos que condenaram milhões de pessoas ao confinamento e à morte, muitos deles por razões bem simplórias, como ouvir música ocidental, imperdoável desvio pequeno burguês. Segundo Soljenitzyn, cerca de 66 milhões de soviéticos passaram pelos gulags, onde, devido ás condições adversas (frio extremo, trabalhos forçados, fome e castigos) centenas de milhares acabaram morrendo e muitos foram fuzilados.

Quando escrevia A longa viagem, Semprun desconhecia também o livro denúncia Relatos de Kolimá, de Varlam Shamalov, sobre a desumanidade dos campos de prisioneiros confinados no extremo da Sibéria, onde “era tão frio que não era possível pensar!” Um Belo Domingo representa, portanto, um novo olhar sobre o período em que seu autor passou em Buchenwald, um amargo ponto de interseção entre os campos concentração nazistas e os gulags soviéticos. No romance, Semprun demonstra que a União Soviética foi precursora na implantação dos campos de prisioneiros, pois, “em 1934, quando o Ministério do Interior de Hitler estabeleceu as normas de internamento administrativo nos campos de concentração, o sistema já funcionava há quinze anos na U.R.S.S”.

Azar tiveram os prisioneiros russos dos campos de concentração nazistas que, depois de libertados pelos aliados, foram enviados (sobretudo boa parte da oficialidade) para o gulags, por ordem de Stalin, quando pensavam que voltariam  para a casa e seriam recebidos com honras de heróis.  Muitos do que sobreviveram aos nazistas sucumbiram nas mãos dos camaradas nas estepes geladas dos confins da Rússia.   Semprun lembra que até Gorki, o célebre romancista que, mais tarde, morreria em circunstâncias misteriosas (dizem que envenenado a mando de Stalin), entoou loas ao regime repressivo, considerando os campos de reeducação “uma escola preparatória. O próprio Lenin já intuíra a necessidade dos gulags, ao afirmar que “o socialismo é o soviete mais a eletrificação”, como ressalta Semprun, em Um Belo Domingo.

Mas, retornemos a Buchenwald.

A ÁRVORE DE GOETHE

A inscrição, na entrada do campo de Buchenwald, significa

“A cada um o que lhe é devido”. diz a  inscrição na entrada de  Buchenwald, em Weimar, centro cultural da Europa que abrigou campo de concentração nazista.

O campo de concentração de Buchen”wald foi construído em Ettersberg, localidade  em que Goethe costumava caminhar ao lado do poeta Johann Peter Eckermann, na cidade de Weimar, um dos principais centros culturais da Europa, onde foi estabelecida uma República, em 1919, que durou até o início do nazismo, em 1933.   Dentro do campo foi conservada uma árvore em que o maior escritor germânico escreveu suas iniciais (JWG, de Johann Wolfgang von Goethe) num daqueles passeios bucólicos em que  mantinha longas conversações com o amigo Eckermann. A árvore de Goethe, como era chamada, inspirou uma passagem memorável de Um Belo Domingo.

O prisioneiro Gérard (codinome de Semprun, na clandestinidade) , então com vinte anos de idade, se afasta, de modo temerário,  da praça do campo, quando é surpreendido por um suboficial da SS, a tropa de elite nazista, que aponta para ele um pistola Mauser nove milímetros.  Numa intuição salvadora, o prisioneiro começa a falar alemão, que aprendera com a governanta germânica de sua família burguesa (Semprun era filho de um embaixador espanhol), obrigada a fugir da Espanha com a eclosão da guerra civil (1936-1939). Diz que estava ali à procura da árvore de Goethe. Meio estupefato, o suboficial pergunta ao prisioneiro se ele conhece Goethe. O jovem Semprun meneia a cabeça, em tom afirmativo. Depois fica sabendo que a árvore, um carvalho e não uma faia, como ele pensava, fica no interior do campo, perto das cozinhas. A vida do escritor espanhol foi salva por Goethe, mais de um século depois da morte do poeta alemão.

Em Buchenwald havia prisioneiros de várias nacionalidades, russos, poloneses, húngaros, tchecos, romenos, franceses, ingleses, judeus e também comunistas alemães. Estes últimos formavam uma espécie de casta entre a ralé internacional, como conta o narrador do romance:

A grande surpresa, em Buchenwald era essa: a existência de uma organização clandestina do partido. Era o resultado da ação dos companheiros alemães, sem dúvida. Embora fossem brutais, arrogantes e sectários; embora a maior parte deles tivesse enlouquecido, o fato era que os companheiros alemães haviam preservado e reconstruído a organização comunista, ou seja a possibilidade de uma solidariedade e de uma estratégia em comum. Tomados individualmente não valiam grande coisa, mas sua organização funcionava.

No campo de concentração, a vida dos prisioneiros pendia ao sabor dos humores dos guardas alemães. O tapa na cara era a humilhação mais comum. De vez em quando, um SS apanhava o boné de um prisioneiro e o atirava além da linha que ele estava proibido de atravessar. Se o prisioneiro não fosse apanhar o boné, era fuzilado por infração ao regulamento que exigia o uso do acessório.  Se fosse apanhá-lo, era morto por ter atravessado a linha proibida.

Um Belo Domingo apresenta um estilo híbrido de romance e memorialística. O tempo cronológico e os assuntos se misturam. Num capítulo o narrador está em Buchenwald, em 1944. Noutro, numa casa da Bulevard Voltaire, em  Paris, em 1964. Mais adiante, na Criméia, numa Dacha soviética (casa de campo para os altos funcionários do partido); na Galeria Nacional de Praga, defronte a um quadro de Renoir,  ou na Universidade de Yale, em New Haven, Connecticuti, nos Estados Unidos, ao lado do cineasta Costa-Gravas e do ator Yves Montand, promovendo o filme A confissão, para o qual escreveu o roteiro.

Todas essas passagens são  presididas pelas recordações que teimam em permanecer como as águas de um rio morto. Inclusive aquela manhã fria e cinzenta, no campo de concentração de Buchenwald, em que um prisioneiro, sem nenhuma razão plausível para a admiração, comenta:

– Um belo domingo, rapazes!

Com seu livro incômodo (pela natureza do tema), ambientado num dos campos da morte do regime nazista, pouco diferente dos campos de extermínio da União Soviética (exceção, talvez, dos fornos crematórios?). Jorge Semprun navega no rio da memória para celebrar um belo domingo que, afinal,  nada mais é do que a vitória da vida sobre a barbárie da morte programada como método de higiene social.  Sobre a persistência da memória, o autor do romance reconhece:

A memória é o melhor recurso, mesmo que pareça paradoxal à primeira vista. O melhor recurso contra a angústia da lembrança, contra a solidão completa, contra a loucura familiar e surda. A loucura criminosa de viver a vida de um morto. 

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